sexta-feira, 29 de novembro de 2013

DE SEGUNDA A UM ANO

Considerado uma raridade, o livro ‘De segunda a um ano’, de John Cage, ganha nova edição

Certo dia, um importante compositor americano caminhava pela 18ª Bienal de São Paulo quando um jovem o abordou, perguntando qual era o objetivo da sua arte. Resposta: “Faço minhas obras não para me expressar, mas para mudar a mim mesmo.”

O ano era 1985, e John Cage (1912-1992) estava no Brasil pela primeira vez. A seu lado, como testemunha do diálogo, estava Augusto de Campos. Ícone da poesia concreta, Campos havia supervisionado a tradução do maestro Rogério Duprat e assinado um poético prefácio ao livro “De segunda a um ano”, que a editora Hucitec lançava na Bienal. Era a primeira obra de Cage a ser distribuída no país — e, desde então, a única. A obra virou objeto de colecionador, mas agora volta às livrarias. Editada pela Cobogó, a versão atual traz novo prefácio de Campos e reúne uma profusão de escritos estruturados em variadas disposições gráficas e esteticamente elaborados em distintos veios literários. Há conferências, poemas — ou mesósticos —, textos teóricos, cartas e parábolas nos moldes das linhas iniciais desse texto.

— São escritos mais ou menos inclassificáveis, indisciplinados e interdisciplinares, com alguns de seus textos mais significativos — diz Campos.

Entre eles, estão duas criações da série “Diário: como melhorar o mundo (Você só tornará as coisas piores)”, um mosaico em que traz à tona suas inquietações existenciais e estéticas — música, ecologia, política, tecnologia, religião, filosofia, artes visuais e trivialidades são temperadas com referências a músicos como Charles Ives e Henry Cowell, artistas como Duchamp, Miró, Jasper Johns, Rauschenberg e pensadores como Henry Thoreau, Daisetz Suzuki, Buckminster Fuller e Marshall McLuhan.

— São considerações anarcotecnológicas, fundadas nos princípios da desobediência civil e da não violência. É talvez sua obra mais provocativa — diz Campos. — Cage foi um estudioso da condição humana, um pensador original, não ortodoxo e não acadêmico.

Considerada pelo poeta uma “proeza de impressão”, a obra desafiou e amedrontou editores por 15 anos — afinal, Duprat concluiu sua tradução em 1970. Desafios que motivaram a editora Isabel Diegues:

— Desde o início da Cobogó eu sonhava reeditar. Me impressionava não termos os livros do Cage disponíveis aqui.

Se, no campo da música, Umberto Eco classificou Cage como “a figura mais paradoxal”, com a qual “compositores europeus estão frequentemente em polêmica sem poder subtrair-se à sua fascinação”, Campos extrapola sua influência aos campos da palavra e da performance:

— Ele era um poeta off-poetry, porque raramente foi classificado como poeta, mas, para mim, foi o maior depois de (Ezra) Pound e Gertrude Stein — diz.

Para a música contemporânea, Cage foi considerado um libertário. Contrapondo-se a seu mestre, Arnold Schoenberg, livrou o compositor do compromisso de se ater a concepções até então imprescindíveis, como a harmonia. Rompeu com as escalas tradicionais e ignorou as distinções entre música e ruído, som e silêncio. A ruptura com Schoenberg se deu quando o mestre, notando sua pouca aptidão à harmonia, vaticinou que o aluno seria incapaz de compor. “Você vai bater de frente com um muro e não vai poder atravessá-lo”, disse Schoenberg. “Então, vou devotar a minha vida a bater a cabeça contra esse muro”, disse Cage.

E o fez. Foi precursor da música concreta e eletrônica e inventor do “piano preparado”. Criou ainda o primeiro happening, em 1952, relacionando linguagens diversas numa mesma performance cênica.

— Chamo-o de “profeta e guerrilheiro” da arte interdisciplinar — diz Campos. — Esse cruzamento entre artes antecipou a revolução tecnológica que vivemos. 


Fonte: globo.com

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